O indiciamento inédito de Donald Trump por múltiplos crimes federais, que incluem ameaças à segurança nacional, foi diluído, graças à mídia conservadora e à assustada mídia supostamente independente, pelo espetáculo do desprezo do ex-presidente diante da lei.
Poucas anedotas definiram a Presidência de Trump e o declínio da democracia americana como o hábito do ex-presidente de jogar documentos oficiais na latrina. A prática foi confirmada em fotos obtidas no ano passado pela repórter Maggie Haberman, do New York Times, mostrando que o escatológico patriarca alaranjado entupiu privadas na Casa Branca e onde se hospedou no exterior com papéis que deviam ter sido arquivados pelo governo federal.
As imagens extraordinárias de documentos secretos roubados do Estado e empilhados num banheiro de Mar-a-Lago podem até inspirar freudianos ociosos, mas elas fazem lembrar John Harington, o inventor da descarga de latrina, no século 16. Harington foi um membro da corte da Rainha Elizabeth 1ª, com uma preferência por humor de banheiro que valeu a ele o apelido de "afilhado apimentado" da monarca. Ele era também um poeta e escritor admirado, cujo estilo algo rabelaisiano foi aproveitado num episódio da série de animação South Park.
Entre as citações famosas de Harington, uma se aplica perfeitamente a esta semana em que o circo da prisão temporária de Donald Trump ilustra a cloaca moral do Partido Republicano. "A traição nunca prospera? Qual é a razão?", propôs Harington. "Pois se prosperar, ninguém ousará chamá-la de traição."
Assim como o respeito à lei e a lealdade à Constituição, a traição ao país deixa de ser chamada como tal cada vez que o mais popular líder republicano desde Ronald Reagan dá a descarga, literal ou metaforicamente, como quando revelou planos de ataque militar do Pentágono. Qualquer burocrata de médio escalão pegaria vários anos de prisão por armazenar segredos nucleares dos EUA num banheiro.
É lamentável que a imprensa política americana continue a acomodar a versão "tio maluco no sótão" do empresário que transformou a Casa Branca num caixa automático para suas empresas e parentes, fazendo voos militares pousarem perto de seu campo de golfe na Escócia —gastando US$ 17 milhões e cobrando US$ 1.185 de diárias do Serviço Secreto para se hospedar em seus clubes e hotéis.
Não há possível estado inicial de demência senil, a doença que acometeu seu pai, Fred, que explique o furto e a recusa em devolver a quantidade de documentos secretos descobertos num clube frequentado por espiões chineses e sabe-se lá que agentes de outros países adversários.
Os rumores sobre a capacidade mental de Trump e uso de estimulantes eram um segredo mal guardado no estúdio de produção do reality show "The Celebrity Apprentice", que ele deixou em 2015 para concorrer à Casa Branca. Mas nenhum diagnóstico neuropsiquiátrico pode eliminar o motivo central do furto dos documentos. Usar os segredos como moeda de troca.
Não há como negar. O principal motivo para Trump armazenar segredos de segurança nacional era seu valor de venda a inimigos dos Estados Unidos. Não importa se ele não entregou. Trump só entende do que tem valor de venda. Terrenos, apartamentos, segredos.
O fato de que os americanos não pagaram –ainda– um preço catastrófico pelo gangsterismo do ex-presidente não exclui a realidade de que ele é o inimigo número um dos Estados Unidos.
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