Quando a Folha me convidou para assumir um espaço que por anos foi da querida Tatiana Prazeres, relutei. Tatiana é uma das maiores referências em análise de China no Brasil, e sua experiência vivendo no país ajudou a qualificar o debate da sinologia na imprensa brasileira. Mas ela deixou Pequim, e, por motivos distintos, eu também. E isso não é um bom sinal.
Por décadas, a China ocupou um espaço exótico no nosso imaginário. Era o lugar de onde vinham produtos importados, populoso, de cultura tão bela quanto indecifrável. Todo mundo sabia que o país estava se desenvolvendo e ficando cada vez mais importante, mas boa parte não entendia muito bem a razão. Em mais de uma ocasião, ouvi de colegas jornalistas que pautas sobre a China só emplacavam quando acompanhadas de algo "bizarro" que pudesse aumentar o número de cliques.
Essa percepção mudou. Se as Olimpíadas de 2008 colocaram Pequim de volta no mapa das grandes potências, a Covid deixou o país sob o holofote geral. Percebo isso porque vi a demanda por trabalho aumentar; fui para a China estudar apostando que o país se tornaria incontornável em alguns anos, e, com o surgimento do coronavírus em Wuhan, em meses todo mundo queria ouvir o que eu tinha a dizer.
O interesse, porém, não foi acompanhado de um boom de jornalistas trabalhando in loco na China. Embora a sinologia tenha vivido uma primavera nos últimos anos, a imprensa mundial não conseguiu aumentar seus quadros à altura do necessário para cobrir um dos temas mais importantes dessa geração.
As causas são muitas, mas passam invariavelmente pelo quão fechada a China se tornou. Para além das fronteiras impenetráveis por razões sanitárias —algo que chegou ao fim com o desmantelamento da política de Covid zero—, nunca foi tão difícil cobrir a China como jornalista profissional.
Conseguir um visto de correspondente é tarefa hercúlea, que demanda meses navegando em meio a burocracia e a custos altos demais para veículos que cambaleiam para fechar as contas. Uma vez credenciados, jornalistas encontram oficiais cada vez mais relutantes em falar com repórteres e um sistema que se tornou mais hostil à imprensa, talvez motivado pelo sentimento de reação.
Assim, Pequim, que outrora borbulhava com uma comunidade ativa de correspondentes, hoje se vê à míngua. Veículos decidiram que os riscos e o assédio oficial a que seus profissionais estavam submetidos não valiam o esforço. Deslocaram equipes para Coreia do Sul, Singapura e Taiwan, cobrindo a China a distância com grande prejuízo para a informação.
Os que restaram enfrentam ainda outros problemas, já que as fronteiras fechadas e os lockdowns frequentes exauriram a saúde mental de vários profissionais, como eu, e afastaram uma nova geração, que agora pretere a China em favor de vizinhos próximos.
No momento mais crucial da história recente, profissionais que de fato se dedicam a entender, analisar e traduzir a China não estão mais no país. A relação com fontes, já muito complicada presencialmente, torna-se quase impossível online com um sistema ostensivo de vigilância digital.
Nesse deserto, o público em busca de informações sobre a China tem, paradoxalmente, menos opções de jornalismo profissional de qualidade. O vácuo abre espaço para folhetins de propaganda, positivas e negativas. Perde o diálogo, perde o debate público. Certamente aumentam os problemas advindos disso.
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