É Logo Ali

Para quem gosta de caminhar, trilhar, escalaminhar e bater perna por aí

É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu Todas

Saci Trilheiro vence trilhas com uma perna, duas muletas e uma bolsa de urostomia; veja vídeos

Amputado e ostomizado, Angelo Santos expõe nas redes suas lutas e vitórias contra o câncer

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nascido na área rural de Ponta Grossa (PR), Angelo Santos, hoje com 48 anos, trabalhou na roça da família e de alguns vizinhos por toda a sua infância e adolescência. Aos 17 anos, começou a sentir uma dor chata na perna à qual, a princípio, não dava muita atenção, mas que aos poucos foi se tornando um inchaço incômodo na altura da virilha. Em um hospital de Curitiba, a cirurgia constatou que não só havia ali um tumor, mas que era da forma mais agressiva. O médico queria amputar a perna logo, a mãe não autorizou, mas a remoção do câncer havia feito um grande estrago na área e ele saiu dali sem conseguir caminhar. Após meses de dores e tratamentos agressivos, o dilema: só a amputação resolveria. No dia 10 de agosto de 1994, deixou no centro cirúrgico toda a perna esquerda e um pedaço da bacia. Teoricamente, segundo o médico da ocasião, estaria tudo resolvido. Só que não.

Já usando uma prótese que se prendia à cintura, que provocava grandes dores em seu uso, mas que ao menino de 18 anos emprestava a ilusão de normalidade em público, Santos voltou aos estudos, ao trabalho, até que, em 1997, começou a sentir inchaço na perna direita. O tumor havia voltado. Os médicos não lhe davam muita esperança, falavam em amenizar os sintomas. Com as sessões de radioterapia, começou a ter dificuldade para defecar. Ganhou, então uma bolsa de colostomia, presa à barriga, que acabou de vez com a possibilidade de uso da prótese ajustada à cintura. Logo depois, deixou de urinar —e veio mais uma bolsa de nefrostomia, aquela que fica pendurada ao lado da perna do usuário.

Angelo Santos, o Saci Trilheiro, desce em rapel da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro
Angelo Santos, o Saci Trilheiro, desce em rapel da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal

"Eu tinha certeza de que ia morrer logo, foi um período difícil", conta Santos. "Achava que não conseguiria estudar, trabalhar, porque imaginava que a bolsa podia cair, vazar, e comecei a fazer trabalhos artesanais em casa".

Foi em 1999 que, após assistir à formatura de uma parente, sentiu motivação para voltar a estudar. "Ver aquelas pessoas se formando foi como virar uma chave, me vi recebendo meu diploma", conta. Com roupas largas que escondiam as bolsas, encarou o vestibular e foi estudar geografia. Para ajudar um pouco, o médico mudou a bolsa de urina para outro procedimento, a urostomia, onde a bolsa também é afixada ao abdome do paciente. Ainda seriam duas bolsas, mas como eram coladas ao corpo, podiam ser disfarçadas com roupas largas.

Angelo Santos e a esposa, Isabel, no alto da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro
Angelo Santos e a esposa, Isabel, no alto da Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal

Concluído o curso em 2003, insistiu com o médico para que tentasse tirar ao menos uma das bolsas, o que acabou conseguindo com mais uma cirurgia de grande porte. Mais tarde, em 2006, uma amiga lhe disse que o Departamento Nacional de Produção Mineral, em Brasília, havia aberto um concurso com vagas para pessoas com deficiência. Fez a prova, passou e viajou 1.300 quilômetros para Brasília em seu Ford Ka adaptado. Está lá até hoje, mesmo depois que o DNPM passou a ser a Agência Nacional de Mineração.

Na capital federal, conheceu Isabel, colega de trabalho com quem se casaria e que o convenceu a frequentar o Clube Naval, onde começou a praticar remo. "Foram quatro anos no remo, competi duas vezes no Campeonato Brasileiro, mas forçava demais o joelho e parei", lembra.

Como sempre gostara de caminhar, começou a fazer percursos cada vez mais longos pelas alamedas de Brasília, em Pirenópolis (GO) e na Chapada dos Veadeiros. "O objetivo ainda não era fazer trilha, mas chegar até as cachoeiras, tomar um banho nas cachoeiras, coisas mais fáceis", acrescenta. Só que os percursos foram ficando cada vez mais longos e, constatando que as crianças o apontavam na rua chamando-o de Saci, e assumindo seu processo de autoaceitação nas redes sociais, resolveu adotar o apelido "Saci Trilheiro", pelo qual é conhecido no Instagram, onde tem mais de 24 mil seguidores.

Angelo Santos, o Saci Trilheiro
Angelo Santos, o Saci Trilheiro - Arquivo pessoal

"A aceitação desse apelido e da minha realidade foi tanta que me convenci de que podia fazer mais trilhas que até então achava que não conseguiria", lembra. "Mas eu me limitava pela interpretação das dificuldades de outros", avalia. Resolveu, então, dar saltos mais altos.

"Na Chapada dos Veadeiros tem uma trilha chamada Mirante da Janela que é de certa dificuldade e eu tinha muita vontade de ir lá, mas as pessoas me diziam que é complicada, tem muita descida, muita subida, muita pedra, é difícil, e eu acreditava que não conseguiria", conta. "Daí um dia eu pensei que o único jeito de saber se daria era tentando, se não desse era só voltar", completa. Pois foi, viu e voltou pronto para desafios maiores.

Intensificando os trabalhos de musculação e preparando as muletas e medicamentos que toma diariamente, fez essa e várias outras trilhas na região, até resolver que era hora de ir além.

"Eu pensava, caramba, como é bom fazer isso, eu consigo", celebra. E mirou nada menos que na Pedra da Gávea, a 844 metros acima do nível do mar, no Rio de Janeiro, e no Pico da Bandeira, com 2.891 metros de altitude, no Espírito Santo, terceira montanha mais alta do país.

Para a empreitada carioca, contatou o Coletivo Inclusão, uma equipe que leva cadeirantes à Pedra da Gávea usando a cadeira Juliette, desenvolvida para esse fim. Mas Santos fez questão de subir com a própria perna, as muletas e a ajuda de um grupo disposto a viabilizar sua conquista. "Foi uma experiência fantástica, mas muito difícil, quando eu me cansava, um pegava no meu pé, outro puxava a corda, foi muito bacana", afirma. Chegando no topo, a surpresa: a descida seria em um rapel de 148 metros. "Eles tinham preparado tudo para mim, a cadeirinha, me ensinaram como fazer e, já que estava lá mesmo, encarei com uma mistura de medo e prazer, imagina olhar aquele abismo, o vento forte batendo, foi um final incrível que esses oito guias que subiram comigo me deram e aos que vou ser eternamente grato", recorda.

Angelo Santos, nos Lençóis Maranhenses, onde percorreu 40 quilômetros
Angelo Santos, nos Lençóis Maranhenses, onde percorreu 40 quilômetros - Arquivo pessoal

Faltava, então, o Pico da Bandeira. Contatando guias locais, conseguiu autorização do Parque Nacional do Caparaó, que abriga essa que é a terceira montanha mais alta do Brasil. "Com uma equipe de dez pessoas subimos em setembro de 2022", conta. A subida foi em duas etapas, a primeira até o acampamento chamado Terreirão. "No segundo dia, acordamos às duas da manhã para ver o sol nascer no topo, que é uma imagem impressionante", lembra.

Depois desses dois desafios, foi conhecer com Isabel os Lençóis Maranhenses, e percorreu os 40 quilômetros de ponta a ponta com suas muletas, a bolsa de urostomia e muita disposição. "Normalmente, antes de começar uma travessia, sinto certo receio, aquela insegurança, será que vai dar, e tal, mas quando termino vejo que valeu a pena enfrentar todos os medos", avalia Santos. "Eu penso que, se não tivesse perdido a perna, teria sido outra pessoa, então estou bem comigo do jeito que sou, de bem com a vida e planejando novas aventuras", filosofa.

Entre seus sonhos mais acalentados, está subir ao monte Roraima, localizado na tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, com 2.810 metros de altitude e exigindo 80 quilômetros de caminhada. "Aí não sei se vai ser possível porque estou com uma artrose no joelho, estou fazendo fisioterapia, mas ainda tenho certa insegurança", admite. Para complicar, Santos é doente renal crônico e, mesmo não precisando de diálise, tem receio de encarar um lugar tão isolado e com difícil acesso a cuidados médicos especializados.

"Tenho que consumir uma dieta hipoprotéica, não posso usar analgésicos nem anti-inflamatórios, então tenho que ser responsável comigo mesmo e tomar muitos cuidados", pondera o Saci Trilheiro. Mas o sonho continua lá. E que ninguém duvide de que, qualquer dia desses, ele vai publicar em suas redes sociais imagens obtidas no tabuleiro do mais famoso monte da América do Sul, aos pés do marco da tríplice fronteira.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.