Como qualquer ser humano, você é formado por trilhões de células, grande parte das quais está em constante processo de divisão. Enquanto você lê esse texto, muitas de suas células estão se dividindo, e cada divisão traz o risco de gerar uma mutação no DNA. Embora a maioria das mutações seja inofensiva ou possa ser corrigida, algumas poderão fornecer à célula a capacidade de proliferar descontroladamente, resultando em um câncer.
As células tumorais são entidades egoístas que buscam a imortalidade, ao mesmo tempo que ameaçam a vida do corpo que habitam. Se, por um lado, graças aos avanços da ciência é muito mais fácil sobreviver a um câncer hoje, por outro, é cada vez mais comum ter essa doença. Novas estimativas sugerem que, nas próximas décadas, uma em cada duas pessoas poderá ser diagnosticada com um tumor maligno em algum momento da vida.
Apesar de fatores relacionados a nosso estilo de vida influenciarem no aumento dos casos, o maior responsável por essa incidência é nossa crescente expectativa de vida. A probabilidade de desenvolver um câncer cresce conforme as células se dividem e acumulam mutações, o que ocorre preponderantemente à medida que envelhecemos: cerca de 60% dos casos acometem pessoas acima de 65 anos. Segundo esse raciocínio, animais detentores de mais células que os humanos e que vivem mais tempo deveriam ter um risco maior de desenvolver câncer, e o oposto também seria válido.
Surpreendentemente, não é assim que as coisas se passam. Há quase 50 anos o pesquisador britânico Richard Peto observou que, apesar de os camundongos terem mil vezes menos células que os humanos e uma expectativa de vida 30 vezes menor que a nossa, o risco de camundongos e humanos desenvolverem câncer era similar. Essa observação ficou conhecida como o Paradoxo de Peto.
Esse paradoxo pode ser observado em diversas famílias animais. A baleia-da-groenlândia, por exemplo, pesa 100 toneladas e vive mais de 200 anos, mas não há registros de tumor maligno nessa espécie. Pesquisadores descobriram recentemente em suas células alterações em genes associados ao reparo do DNA e à regulação das divisões e do metabolismo celulares. De forma similar, a baleia jubarte possui duplicações em genes que podem favorecer a morte de células tumorais e a ativação do sistema imunológico.
Já em elefantes, cuja taxa de câncer é de apenas 5%, foram observadas muitas cópias extras de um gene supressor de tumores, o chamado TP53 – ele codifica a produção da proteína p53, a principal reguladora dos nossos ciclos de divisões celulares, "a guardiã do genoma". Danos no DNA ativam tal proteína, que irá disparar uma sequência de eventos na célula, na tentativa de reparar o DNA danificado, parar o crescimento celular ou levar a célula modificada à morte, impedindo que ela se divida e passe adiante as mutações adquiridas. Nos elefantes, se uma cópia deste gene se tornar inativa, há muitas outras que podem assumir o controle e proteger o organismo.
Nos últimos anos os dados sobre as taxas de tumores e o funcionamento das células em diversas espécies do reino animal nos ajudaram a compreender a importância do papel da evolução no desenvolvimento do câncer. Acredita-se que grandes e longevos animais precisaram desenvolver adaptações compensatórias para que seu robusto número de células pudesse continuar se dividindo por décadas sem gerar tumores.
A evolução também pode explicar porque alguns mamíferos apresentam taxas mais altas de câncer do que outros, e a chave para as respostas pode estar na gestação. Em alguns mamíferos placentários, como os humanos, a parte fetal da placenta invade o tecido materno para alcançar os vasos sanguíneos do útero e obter nutrição para o feto. Há grandes semelhanças entre a invasão das placentas útero e a do câncer nos tecidos do corpo, e animais com esse tipo de invasão placentária têm mais chances de desenvolver tumores mais invasivos.
Em concordância com esses achados, vários genes relacionados à capacidade invasiva da placenta também foram altamente expressos em metástases tumorais. Uma hipótese é que, com o surgimento dos mamíferos placentários há 100 milhões de anos, mecanismos que permitissem ao sistema imunológico materno tolerar a invasão do tecido fetal poderiam ter sido selecionados, trazendo o ônus de um maior risco para desenvolver tumores.
Ainda faltam muitas respostas para que possamos resolver os paradoxos do câncer. Estudar como diversos animais suprimem o desenvolvimento de tumores poderá fornecer recursos para que o tratamento em humanos seja ainda mais efetivo nas próximas décadas.
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Rossana Soletti é professora da UFRGS e pesquisadora na área de oncobiologia.
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