Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte
Com ou sem pandemia, há quem viva o mundo todo, mas sem sair do lugar
Viagem imaginária pode trazer resultados ainda que turista não se mova da cadeira
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Ao pensar em turismo, nos tempos do coronavírus é irresistível devanear sobre que lugares gostaríamos de visitar assim que a mobilidade tornar a ser possível. Seria voltar aos lugares mais queridos? Seria, pelo contrário, mais uma vez se aventurar por destinos desconhecidos? Seria nos nortear pelas cidades onde vivem pessoas queridas, mais para revê-las do que pelo local em si?
Andei pensando no assunto, quem sabe volte a ele aqui neste espaço. Mas, durante esta reflexão, me veio à mente outro tipo de viagem, possivelmente mais adequada aos grilhões da quarentena: a que se faz sem sair do lugar. Uma atitude de imobilidade que pode ser motivada pela preguiça, pela falta de necessidade, mas também por outras razões. Por exemplo, o medo do trajeto ou o pânico diante do desconhecido.
E mesmo assim, a viagem imaginária pode trazer resultados, ainda que o viajante não se mova da cadeira.
O arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer (1907-2012) tinha pavor de voar de avião. Evitava ao máximo se deslocar para longe, mesmo quando tinha necessidade profissional. Para Brasília, cujos edifícios ele projetou no final dos anos 1950, ele ia sempre em demoradas viagens de carro. Mas para a América do Norte, a África ou a Europa, aonde a solução seria o navio, o trajeto tomava muito mais tempo.
Ele até foi algumas vezes. Mas o grosso do trabalho —projetos adequados àquela realidade humana e física, acompanhados do desenvolvimento e execução das obras— era feito mais com base na imaginação do que na observação in loco. (O que talvez explique em parte a inadequação de certos projetos, embora de inegável resultado plástico.)
Foi assim que o arquiteto projetou e edificou obras que se tornaram referência em vários países, como o edifício das Nações Unidas em Nova York (1947), a sede do Partido Comunista em Paris (1965) e a da editora Mondadori em Milão (1968), sem falar de duas universidades na Argélia (a primeira, de Constantine, de 1965).
Mencionei aqui semanas atrás o livro de Alain de Botton, “A Arte de Viajar”. Nele o autor menciona outro livro, bem antigo, de 1884, chamado “Às Avessas”, de J.-K. Huysmans.
Seu curioso personagem ficcional, um rico e decadente aristocrata francês, vivia perto de Paris e era, também ele, uma espécie de turista sedentário, como tentava ser Niemeyer. Com a diferença de que o arquiteto teria razões de trabalho para viajar, enquanto este duque só o faria para excitar sua existência.
Acontece que ele desconfiava da necessidade de se deslocar para conhecer outros mundos —seu maior prazer era ler os clássicos da literatura no aconchego de sua suntuosa mansão. Mas foi um livro de Charles Dickens que acendeu em seu íntimo a vontade de conhecer Londres, a ponto de levá-lo a organizar uma viagem até lá.
Com suas malas e um criado ele rumou para Paris, a caminho do Reino Unido. Nas horas em que esperava o trem, visitou uma livraria britânica, comprou um guia de Londres, almoçou num pub inglês perto da estação de Saint-Lazare, como se em Londres estivera (chope direto da torneira, sopa de rabada, hadoque defumado, rosbife com batata, queijo Stilton...).
E então deu-se conta de que, sedentário que era, todo o suplício que passaria dali para a frente —nos trâmites da estação, nos desconfortos das esperas, nas intermináveis horas no trem— não eram mais necessários: “A imaginação era capaz de proporcionar um substituto mais do que adequado à realidade vulgar da experiência concreta”. O que De Botton tenta mostrar com sua viagem a Barbados, que na vida real fora bem menos excitante do que nos prospectos que o tentaram.
Num momento de encarceramento (ainda que, pelo menos no Brasil, seja de certa forma voluntário), pode ser um alívio pensar que podemos entregar à nossa imaginação (com o auxílio de estímulos, como livros, filmes, realidade virtual) a missão de nos apresentar novos mundos.
Julio Verne já deu um pontapé inicial há 150 anos, quando nos levou a viajar pelo fundo do mar a bordo do “navio submarino” Nautilus. É a viagem que tenho feito estes dias com meu filho pequeno. Capitão Nemo, aqui vamos nós em direção ao desconhecido, mas sem sair da cama!
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