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Reportagem

Venezuela: Enfraquecimento dos bancos incentiva surgimento de alternativas de crédito

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Após anos de contração econômica, novas alternativas de crédito começam a surgir para os venezuelanos. Uma empresa privada e alguns bancos oferecem modalidades de crédito à população para facilitar o acesso a bens e serviços. Os consumidores aproveitam o crediário para parcelar roupas, viagens, motos, eletrodomésticos e até serviços médicos.

Informação sobre Cashea em estabelecimento comercial de Caracas
Informação sobre Cashea em estabelecimento comercial de Caracas © Elianah Jorge
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Elianah Jorge, correspondente da RFI  Brasil na Venezuela

A pioneira é Cashea, que surgiu no mercado venezuelano no final de 2023. Para garantir a rentabilidade em um país com frágeis garantias legais, esta empresa – em parceria com o estabelecimento comercial afiliado – aplica o chamado “desconto cego”. A cada compra feita pelo consumidor, a companhia recebe um pequeno percentual. Os limites de crédito chegam a US$ 200 e o consumidor pode pagar em até três parcelas.

As transações de crédito e de pagamento são feitas por um aplicativo, explica Daniesca Borges, uma jovem consumidora que recorre a essa modalidade para comprar roupas e acessórios:

“Você usa o aplicativo, vai à loja e escolhe os produtos. Quando vai fazer o pagamento, eles registram o seu perfil de usuário, cobram a metade na loja e sincronizam tudo com o aplicativo da empresa que oferece o crédito", conta. "Chega [no celular] a notificação do produto que você está comprando, a informação da data das parcelas a serem pagas e o valor de cada uma delas.”

Daniesca Borges usa Cashea para comprar roupas e acessórios
Daniesca Borges usa Cashea para comprar roupas e acessórios © Elianah Jorge

No ano passado, o Produto Interno Bruto (PIB) da Venezuela cresceu 2,6%, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Embora tenha subido, o índice ainda está muito distante da chamada era da Venezuela Saudita, período entre as décadas de 1950 e 1980, quando o país era rico e a moeda nacional, o bolívar, tinha alto poder de compra.  

Apesar do salário mínimo de US$ 3,20 ( R$16,30), a população conserva hábitos consumistas. Há sede de consumo e de créditos na Venezuela. Em pouco meses o novo sistema de crédito registrou mais de um milhão de usuários e a afiliação é superior a 350 estabelecimentos em cinco cidades. Cashea se tornou o segundo aplicativo de finanças do país, atrás apenas do Banco de Venezuela, e está em 20° lugar na escala global.

A atividade comercial motivada pela empresa vem dinamizando a atividade comercial no país. Pelas redes sociais, Pedro Valenilla, cofundador de Cashea, informou que estabelecimentos afiliados à empresa contabilizam aumentos de até 20% nas vendas, além de atrair clientes.

O economista Luis Oliveros explica que, na atual situação da Venezuela, os bancos têm tido inúmeros problemas na concessão de crédito. "Há cerca de 10 anos, a carteira de crédito no país girava em torno de US$ 15 bilhões. Depois, com toda a crise econômica, a carteira de crédito caiu para US$ 300 milhões ou até menos", relembra.

"O último número divulgado pelo Banco Central da Venezuela aponta para uma carteira de crédito próxima de US$ 1,6 bilhões. Embora seja um aumento significativo em relação ao que tínhamos há 3 ou 4 anos, ainda está muito abaixo do que tínhamos como economia”, detalha Oliveros.

Anos de consumo baixo

Enquanto os bancos choram, a empresa que oferece sistemas de crédito vende de tudo a clientes ávidos por comprar após anos consumo em baixa.

“Ainda há muito que crescer. A economia precisa de crédito e surgem empresas que têm ajudado os venezuelanos a ter algum acesso ao crédito, mas que não passam de intermediários. O que Cashea, por exemplo, faz é cobrar uma taxa daquela empresa e servir de intermediário para dar a essa pessoa 15, 30 ou 45 dias para pagar”, explica Oliveros.

A crise econômica e a incapacidade de intermediação financeira abalaram o sistema de crédito no país. Por anos, os bancos não concederam financiamento a clientes de médio e pequeno portes.

A economista e professora universitária María Antonia Moreno explica que um dos instrumentos usados para impedir a expansão secundária de dinheiro foi a implementação de uma taxa elevadíssima de reserva legal de quase 90%. 

“A enorme contração da renda petroleira e as arrecadações tributárias afetaram a confiança para dar crédito. Por isso o governo começou com a monetização da parte do gasto público, o que gerou uma inflação e uma grande desvalorização cambial, que aprofundou a perda patrimonial dos bancos", relembra.

"Foi uma rígida política de repressão financeira que o governo usou para corrigir a hiperinflação e que o fez através do impedimento da expansão secundária de dinheiro e, assim, frear a desvalorização cambial e a inflação. Isso se traduz, na prática, pela eliminação de crédito bancário em todas as áreas", constata.

Inflação em queda

De acordo com o presidente Nicolás Maduro, em 2024 a inflação registra o menor nível dos últimos 12 anos. Em abril, chegou a apenas 2%, bastante inferior aos experimentados entre 2012 e 2021, quando a desvalorização do bolívar teve forte impacto negativo nos créditos bancários.  

“Com a hiperinflação, o crédito ao consumidor chegou a desaparecer praticamente para a maioria dos portadores de cartões de crédito. De acordo com algumas estimativas, o montante da carteira de empréstimos bancários nacionais em cartões de crédito teria atingido, até o final de 2022, apenas 0,4% do que havia 10 anos antes”, salienta Moreno.

O “plástico”, apelido dado ao cartão de crédito, virou motivo de piada entre os venezuelanos. Por anos, o valor permitido ao cliente servia apenas para comprar uma garrafinha de água.

De acordo com a Sudeban (Superintendência das Instituições Bancárias, órgão regulador do setor bancário), em 2014, antes do agravamento da crise econômica, 13% dos gastos feitos pelos venezuelanos com cartões de crédito foram em supermercados e 5% em centros médicos e farmácias. Outros 11% foram para lojas de roupas e calçados.

Atualmente, poucos clientes têm créditos bancários, que variam entre US$ 30 e US$ 200, conforme a comprovação da capacidade de reembolso. No entanto, estes valores não permitem a compra da cesta básica, orçada em US$ 554 (R$ 5.115), de acordo com a recente análise do Centro de Documentação e Análise Social (Cendas).

As limitações impostas às instituições bancárias fazem com que, na maior parte dos casos, apenas as pessoas jurídicas consigam certos benefícios. "Não é que haja mais burocracia agora, mas sim que o banco é menor em tamanho. Cerca de 70% dos empréstimos bancários são direcionados para empréstimos comerciais porque o banco tem limitações importantes na concessão de empréstimos", ressalta Luis Oliveros. 

"Há uma reserva legal muito grande, mas além disso o banco tem um tamanho muito pequeno, portanto, as possibilidades de que ele tenha dinheiro para emprestar é menor. Então, o banco toma cuidado na hora de emprestar."

De acordo com o analista financeiro Henkel García, o crédito bancário é destinado principalmente a empréstimos comerciais para empresas e setor agrícola. 

“O crédito ao consumidor ainda é muito baixo, embora agora comecemos a ver um pouco mais de limite no cartão de crédito para determinados clientes e também em alguns créditos a veículos, que também é uma carteira que está crescendo de forma incipiente", nota García. "Mas o resto do crédito ao consumo é muito, muito limitado."

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