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Aumento de mulheres nas lideranças políticas da América Latina: avanço real ou mudança de fachada?

Desrespeito às cotas, atribuição sexista de mandatos, estereótipos sobre mulheres candidatas... Embora a América Latina seja regularmente apresentada como um modelo em termos de feminização da política, a região ainda parece ter um longo caminho a percorrer até que as mulheres se instalem realmente no poder, como Cristina Kirchner na Argentina, Dilma Rousseff no Brasil, Dina Boluarte no Peru e Claudia Sheinbaum, recém-eleita no México.

A candidata presidencial do partido governista, Claudia Sheinbaum, discursa para seus apoiadores depois que o Instituto Nacional Eleitoral anunciou que ela detinha uma liderança irreversível na eleição na Cidade do México, na segunda-feira, 3 de junho de 2024.
A candidata presidencial do partido governista, Claudia Sheinbaum, discursa para seus apoiadores depois que o Instituto Nacional Eleitoral anunciou que ela detinha uma liderança irreversível na eleição na Cidade do México, na segunda-feira, 3 de junho de 2024. AP - Eduardo Verdugo
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Por Caroline Renaux

“Pela primeira vez em duzentos anos de república, eu me tornarei a primeira mulher presidente do México”. Com seu sorriso franco, Claudia Sheinbaum triunfou na eleição presidencial de domingo, 2 de junho de 2024, com quase 58% dos votos, contra seu rival Xóchitl Gálvez.

Ao final de uma campanha totalmente feminina na reta final, a ex-prefeita da Cidade do México se junta às muitas mulheres que lideraram países latino-americanos, como Cristina Kirchner na Argentina (2007-2015), Dilma Rousseff no Brasil (2011-2016) e Dina Boluarte, presidente do Peru desde 7 de dezembro de 2022. A esses países se juntam Bolívia, Chile, Costa Rica, Equador (por apenas dois dias), Honduras, Nicarágua, Panamá e El Salvador.

A região, regularmente aclamada pelo papel desempenhado pelas mulheres na política, também tem a maior proporção de mulheres em seus parlamentos. De acordo com dados da União Interparlamentar, 36,6% das mulheres ocuparão uma cadeira parlamentar na região em 2024, incluindo o Caribe, em comparação com 26,9% em todo o mundo.

Além disso, em 2024, mais de 22% dos presidentes parlamentares da região serão mulheres, assim como um terço dos ministros e quase um em cada dois vice-presidentes. “Eles não se contentam em incluir apenas algumas mulheres na esperança de legitimar superficialmente a dominação dos homens”, diz Lissell Quiroz, professora de estudos latino-americanos na CY Cergy Paris Université e editora do livro "Féminismes et artivisme dans les Amériques".

Cotas e leis de paridade

Esse registro aparentemente lisonjeiro é o resultado da introdução de cotas para mulheres candidatas a partir da década de 1990, começando pela Argentina em 1991. Em seguida, muitos outros países, como Paraguai, Brasil e República Dominicana, e onze outros que, desde então, trocaram suas cotas por leis de paridade.

Atualmente a Guatemala é o único país da região que não adotou cotas de gênero. “Houve uma mudança cultural após a onda de democratização nas décadas de 1980 e 1990, quando vários governos de esquerda pressionaram por maior igualdade na legislação, principalmente criando ministérios da mulher e introduzindo cotas”, explica Maxine Molyneux, professora de sociologia da University College London (UCL) e especialista em política do feminismo latino-americano.

Para Christophe Ventura, diretor de pesquisa do Instituto de Relações Internacionais Estratégicas (IRIS na sigla em francês) e chefe do programa para a América Latina e o Caribe da entidade, essas leis também são o resultado de uma “profunda feminização das sociedades”, que ainda são em grande parte machistas.  

“Está ocorrendo uma verdadeira mudança demográfica, com as mulheres agora em maioria e com um acesso sem precedentes ao ensino superior a partir dos anos 2000”, explica o autor do livro "Géopolitique de l'Amérique latine". Vinte anos atrás, apenas um em cada seis legisladores, em média, era mulher nas Assembleias e Senados da região.

Distribuição de cargos com base no gênero

No entanto, em uma inspeção mais minuciosa, esse perfil de destaque no que diz respeito à representação das mulheres na política é frequentemente prejudicado. Em nível local, onde se encontra a administração cotidiana de um certo clientelismo, a promessa de inclusão é frustrada: de acordo com o Observatório para a Igualdade de Gênero na América Latina e no Caribe (CEPAL), em 2023, apenas 15,4% das prefeitas eram mulheres.

Embora Peru, Cuba, Costa Rica e México tenham alcançado uma alta porcentagem de mulheres em conselhos eleitos (mais de 40%), apenas a Bolívia pode se orgulhar da paridade em nível local. Panamá, Guatemala e Brasil têm as porcentagens mais baixas.

Cargos simbólicos para as mulheres

Luiz Inácio Lula da Silva com a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff após a posse de Dilma como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS em Xangai, na quinta-feira, 13 de abril de 2023.
Luiz Inácio Lula da Silva com a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff após a posse de Dilma como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS em Xangai, na quinta-feira, 13 de abril de 2023. AFP - RICARDO STUCKERT

"Assim que há um órgão com poder real, como uma prefeitura, os homens se apoderam dele para criar seu território de dominação", reclama Lissell Quiroz. Por outro lado, cargos mais simbólicos, como o de conselheira regional (cargo equivalente ao de deputado estadual no Brasil), podem ser abertos às mulheres.

Nos gabinetes executivos da América Latina, a política também tem um gênero. De acordo com relatórios de vários pesquisadores, a distribuição de cargos é “sexuada”, ou "sexista", e as funções governamentais ainda são amplamente dominadas por homens.

Os homens detêm as pastas de economia, relações exteriores e defesa, enquanto as mulheres são responsáveis pelas questões sociais e pela educação. A única vez em que isso realmente não aconteceu foi no governo de Michelle Bachelet [presidente do Chile de 2006 a 2010 e novamente de 2014 a 2018]", diz Maxine Molyneux.

Em 2016, seu governo nomeou mulheres para cargos de alto nível e não apenas para os chamados "cargos de gênero". Em março de 2022, sob o comando de Gabriel Boric, o gabinete presidencial chileno tornou-se o primeiro na história do país a incluir mais mulheres do que homens (14 contra 10).

“Alguns países não respeitam suas cotas”

Por trás da fachada, há também estratégias para evitar as leis de cotas e paridade. Muitas vezes, as regras eleitorais que regem quem pode se candidatar e como os partidos políticos devem administrar suas candidaturas só se aplicam às pré-candidaturas.

Quando se trata de candidaturas oficiais, em que a lei não se intromete nem impõe penalidades, os partidos às vezes tomam a liberdade de substituir mulheres por homens. “Enquanto no México não é permitido avançar se as cotas não forem respeitadas, alguns países, como o Brasil, o Paraguai ou a Colômbia, que nem sequer chegam a 20% de mulheres em cargos políticos, não preveem penalidades e não se preocupam em respeitar suas cotas”, ressalta Maxine Molyneux. 

"A América Latina parece boa no papel, mas, na prática, as mulheres ainda enfrentam um grande obstáculo: em quase todos os países persiste a desconfiança em relação às mulheres na política e a preferência pelos homens".

Lissell Quiroz critica a posição das mulheres nas chamadas eleições “multimembro”. Nesses pleitos, que são muito comuns na América Latina, cada partido apresenta uma lista de candidatos, que recebem mandatos no final da votação proporcionalmente ao número de votos que recebem.

“Se você tem uma lista de 50 pessoas, mas sabe que apenas as dez primeiras serão eleitas, as mulheres sempre estarão no final da lista”, diz a especialista. 

"Uma mulher sozinha é considerada suspeita"

Esses estereótipos estão presentes até mesmo nos perfis das mulheres candidatas que são eleitas. “Na América Latina, as mulheres geralmente têm sucesso na política quando são retratadas como herdeiras de um homem poderoso e popular”, lamenta a professora de sociologia da University College London.

No Brasil, Dilma Rousseff foi vista como a preferida pelo ex-presidente Lula após sete anos como ministra em seu governo; Cristina Kirchner seguiu os passos de seu marido Nestor, presidente da Argentina de 2003 a 2007; Violeta Chamorro se tornou um símbolo poderoso para as forças de oposição da Nicarágua após o assassinato de seu marido Pedro Joaquín Chamorro Cardenal...

E Claudia Sheinbaum fez de sua missão seguir os passos de seu mentor, Andrés Manuel Lopez Obrador, conhecido como AMLO. "Uma mulher sozinha é considerada suspeita", resume Lissell Quiroz. "Mesmo que eleja mulheres, o sistema continua completamente patriarcal".

Como prova disso, os avanços nos direitos das mulheres ainda estão lutando para ver a luz do dia nesses países onde o peso da Igreja Católica [ou da Igreja Evangélica, no caso do Brasil] está agora associado a um ressurgimento da extrema direita nacionalista.

Embora o movimento feminista da “onda verde” esteja fazendo campanha desde 2015 pelo direito ao aborto livre, seguro e legal, em muitos estados latino-americanos ele ainda é parcialmente penalizado ou até mesmo ilegal.

Além disso, em 2022, de acordo com a CEPAL, pelo menos 4.050 mulheres foram vítimas de feminicídio, com o Brasil e o México na liderança. “Assim como a representação política, o reconhecimento dos direitos das mulheres é um processo de longo prazo, exigindo uma mudança nos costumes que tem a ver, antes de tudo, com o conceito de família e o papel da religião”, diz Christophe Ventura.

No que diz respeito às mulheres na política, a CEPAL estima que serão necessários mais de 40 anos para que haja tantas mulheres quanto homens apenas nos parlamentos nacionais.

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