Palco de conflitos políticos e familiares no decorrer do século XX, Catolé do Rocha, no Sertão da Paraíba , ganhou a alcunha de “Praça de Guerra” na obra do compositor e cantor paraibano Chico César. Em 2015, o documentário de mesmo nome, do diretor Edimilson Júnior, falou sobre o movimento do Capim Açu, que hoje ficou conhecido como a Guerrilha de Catolé e foi mais um capítulo das páginas que justificam o apelido da cidade.
O movimento foi formado por estudantes secundaristas que se reuniram na Serra do Capim Açu com o objetivo de treinar para uma guerrilha armada pelo fim da Ditadura Militar. Em memória dos 60 anos do golpe militar brasileiro, o JORNAL DA PARAÍBA foi até Catolé do Rocha conversar com um dos líderes desse movimento, Ubiratan Cortez.
Pela participação no movimento, Ubiratan e outros dois líderes, Francisco Dantas (Cacheado) e Ariosvaldo da Silva (Ari), foram presos, condenados e cumpriram pena de um ano.
Viver na esperança
Ubiratan Cortez, de 74 anos, guarda registros deste período e ainda acredita no mesmo ideal que buscou ao subir à serra com seus colegas: “Pensamos em transformar nosso país digno de estar no rol das Nações desenvolvidas, riquezas para nosso povo através de uma revolução”.
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O que pode ser considerado utópico, traz uma pulsão de vida, fonte do desejo de acreditar no que quer que seja.
Como dizia Sartre ‘vivemos na esperança’ continuamos tal qual Sancho Pança: ‘Escudo ao ombro, lança em punho...venceremos!’”, afirmou Cortez.
Hoje, a casa em que mora traz nas paredes memórias de seus cinco filhos e sete netos, mas também, em um dos quartos, há uma espécie de memorial subversivo, com revistas sobre a União Soviética, livros diversos e uma pasta com fotos e documentos referentes ao movimento do Capim Açu.
Sonho subversivo
Em 1964, os militares depuseram o então presidente do Brasil João Goulart e instauraram um governo ditatorial. Entre as principais características do regime militar estava a proibição de eleições diretas, como as que acontecem hoje, forte fiscalização e censura à arte e à mídia em geral, assim como perseguição e repressão a movimentos sociais.
Na época, Ubiratan Cortez e seus colegas faziam o segundo grau no Colégio Dom Vital, em Catolé do Rocha. Ali, começaram leituras que serviriam de norte para o futuro movimento do Capim Açu, assim como para a atuação política nos anos seguintes.
“A gente começou a ler Marx, a ler ‘O Manifesto’, ‘Nossa Luta’, sobre a Revolução Cubana, a Chinesa, a Russa. A gente se aprofundou e entrou com os pés e com as mãos”.
Para acompanhar notícias dos países admirados pelos jovens, utilizavam um rádio de ondas curtas e sintonizavam rádios de Cuba, de outros países do Caribe e até da União Soviética.
Com o fim do segundo grau, alguns desses jovens foram fazer cursos técnicos em João Pessoa, inclusive Ubiratan Cortez que estudou eletromecânica. Na capital, tiveram contato com outras leituras e filmes, alimentando ainda mais o sonho subversivo de derrubar o regime.
A Guerrilha de Catolé ou movimento do Capim Açu
Conforme registrado no relatório da Comissão Estadual da Verdade e da Preservação da Memória do Estado da Paraíba, ao todo, 19 estudantes secundaristas participaram do movimento que contou com duas expedições.
A primeira na Semana Santa de 1969 e a segunda nas férias de julho desse mesmo ano. Em sua grande maioria, os jovens eram menores de 18 anos, sem nenhuma experiência política, ou com pouca formação política. A topografia do local favorecia o treinamento e permitia que o movimento permanecesse secreto.
Conforme registrado no relatório final da Comissão Estadual da Verdade, Ariosvaldo Dantas explicou que "não houve guerrilha. Houve um treinamento de guerrilha".
“Já tínhamos projetada a subida para as férias de julho. Saímos pela madrugada e até a descida foram cinco dias de escalada, treinamentos e literatura”, relembrou.
Segundo Ubiratan, passaram cerca de cinco dias no cume da serra, mas precisaram descer algumas vezes para buscar água em um pequeno riacho. O armamento utilizado era composto por armas que os integrantes tinham em casa. Na época, não havia uma regulamentação e fiscalização sobre o porte e posse de armas no Brasil. Então, especialmente em residências da zona rural, era comum as pessoas terem algum armamento guardado.
“O que a gente levava na época era armamento assim que todos possuíam. Espingarda de cartucho, revólver, os que eram mais guardados assim que não podiam usar era fuzil e mosquetão”.
Durante os cinco dias, os integrantes treinaram pontaria, fizeram preparação física, aproveitando a topografia da serra, realizaram leituras e discussões políticas. Entre tiros, leituras e aprendizado sobre a sobrevivência no mato, o treinamento aconteceu sem interrupções e conflitos. Os estudantes desceram a serra e quem viu pensou se tratar de um grupo de escoteiros.
No relatório final da Comissão Estadual da Verdade, Ubiratan Cortez relatou como foi o fim do treinamento e o retorno para casa: "Não foram tão intensos assim esses treinamentos porque agente não dispunha de munição o suficiente. Aí voltamos passando pela encosta da montanha, pelo outro lado e entramos na cidade e nós nos dispersamos".
Período da prisão
Os estudantes continuaram a viver normalmente até outubro de 1969, quando um episódio chamou a atenção dos militares. Foi a morte do estudante João Roberto Borges de Souza, encontrado morto em um açude no Sítio Olho D'Água, em Catolé do Rocha.
Integrante do movimento estudantil na Grande João Pessoa, o estudante saiu da capital no dia 15 de setembro. Segundo o relatório da Comissão Estadual da Verdade, teria ido até Macaíba, estado do Rio Grande do Norte, onde conseguiu uma outra carteira de identidade com o nome Carlos Alberto da Silva.
Depois, foi para a Zona Rural de Catolé do Rocha e ficou por alguns dias na casa da família de um colega de universidade. Até que no dia 10 de outubro, foi encontrado morto com sinais de afogamento.
No dia 22 de outubro de 1969, todo o grupo foi detido, segundo a Comissão Estadual da Verdade. Porém, apenas Ubiratan, Francisco Dantas e Ariosvaldo ficaram presos e foram condenados porque na época já eram maiores de idade. Bira ainda lembra o que estava fazendo na tarde em que foi preso.
“No dia 10 de outubro de 69, apareceu morto por afogamento no distrito do Coronel Maia o estudante João Roberto, líder estudantil que morava em Cabedelo e veio se refugiar na casa de um colega de universidade, houve investigação e já tínhamos uma militância forte na cidade com panfletagem e pichamentos, o que chamou a atenção da repressão. Em 22 de outubro, todos que participaram da subida à Serra de Capim Açu foram presos na cadeia local”.
De Catolé do Rocha, os presos foram transferidos para João Pessoa. Ficaram por um tempo no Quartel General do Exército na capital. Foi lá onde Ubiratan Cortez completou 20 anos. Depois, foram transferidos para o presídio do Róger.
Ubiratan Cortez não chegou a ser torturado fisicamente, mas presenciou torturas, como o do pau-de-arara, além de outros ataques à dignidade humana, como amontoados de presos sem roupa e de cabeça raspada, em situações precárias. Em um episódio, foi chamado pelo delegado e teve certeza de que iria morrer.
“Me despedi de Neto e de Ari, que eu ia morrer ali. Pela educação que a gente tem do sertão de ser caba brabo mesmo, principalmente aqui de Catolé do Rocha, eu tinha um porte de muita força disse ‘eu morro atracado mas pelo menos um ou dois eu levo’. Foi uma tortura psicológica. Conheci o célebre pau- de-arara que a gente sabia como era todo o funcionamento mas nunca tinha presenciado. Tinha um ladrão no pau-de-arara”.
Os longos meses com medo do “tilintar do molho de chaves dos carcereiros” passaram, e os prisioneiros foram libertados em 29 de outubro de 1970. Em Catolé do Rocha, foram recebidos com uma carreata, alegria dos estudantes e abraços da família.
“A gente ia sair dia 22 de outubro de 1970. Eles prorrogaram até 29. Acho que descobriram que a gente ia fazer esse movimento aqui, mas mesmo assim ainda conseguiu. Depois fomos para a casa dos meus pais, aqui perto. Teve um almoço lá”.
Nos anos seguintes, precisaram seguir a vida com a certeza de que estavam sendo espionados. Até as correspondências chegavam abertas. “Notamos que estava sendo vigiado. Comecei a fazer um curso de alemão com as freiras franciscanas, aí tinha um professor de inglês, a gente confirmou depois, que era informante da ditadura. Teve um tempo também que minha correspondência começou a ser violada. Recebia os envelopes abertos”.
Chama acesa
Ubiratan diz que continuou envolvido em articulações e movimentos sociais, para mandar a “chama acesa”, mas confessa que por muito tempo teve medo do mundo em que seus filhos nasceriam.
“Eu passei um tempo sem casar. Casei com 28 anos porque eu não queria colocar os filhos dentro de um sistema desumano, que destrói a essência do ser humano”.
Com a sua esposa, Ubiratan teve sete filhos, dos com nomes indígenas, uma homenagem à sua ascendência Potiguara: Poti, Maní, Tabira, Aratã e Aruan.
Atualmente, morando na casa que fez parte da propriedade de seu pai, Ubiratan vive entre a alegria de seus sete netos e o desejo de que as gerações futuras possam viver no mundo justo que ele e seus colegas do movimento do Capim Açu, a famosa Guerrilha de Catolé, assim como tantos outros presos e torturados na Ditadura Militar, idealizaram.
Que nossos filhos e outros descendentes vivam num mundo que a gente tentou construir e não conseguiu”.