O que está em jogo com projeto que torna homicídio aborto após 22 semanas de gestação

Mulher segura cartaz que diz: Não ao PL da gravidez infantil

Crédito, MAURO PIMENTEL/AFP via Getty Images

Legenda da foto, Protesto no Rio de Janeiro (RJ) contra o PL nesta quinta-feira (13)

Um projeto de lei assinado por 32 deputados pretende equiparar qualquer aborto realizado no Brasil após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio.

A regra valeria inclusive para os casos em que o procedimento é autorizado pela legislação brasileira, como na gravidez decorrente de estupro.

O PL 1904/2024, cujo primeiro autor é o deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), acrescenta alguns parágrafos a quatro artigos do Código Penal Brasileiro, que foi instituído em 1940.

Segundo a nova proposta em discussão na Câmara dos Deputados, "quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples".

O projeto argumenta que o Código Penal, estabelecido em 1940, não estabelece esse limite de 22 semanas porque "um aborto de último trimestre era uma realidade impensável [naquela época] e, se fosse possível, ninguém o chamaria de aborto, mas de homicídio ou infanticídio".

De acordo com a proposta dos deputados, as pessoas envolvidas num aborto após as 22 semanas de gestação — como a mulher e o profissional de saúde — podem ser condenadas pelo crime de homicídio simples.

Atualmente, as penas por homicídio simples no Brasil variam de 6 a 20 anos de reclusão.

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Na noite de quarta-feira (12), a Câmara aprovou o regime de urgência para tramitação do projeto, o que foi solicitado pelo deputado Eli Borges (PL/TO) — que também assina a proposta.

Isso significa que o projeto pode ser votado diretamente pelo plenário da Câmara, sem a necessidade de debates e pareceres nas comissões.

Com isso, o Plenário pode votar sobre o projeto nos próximos dias.

O pedido de urgência foi incluído na pauta pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL).

Parlamentares de oposição reclamaram da rapidez com que a votação sobre a urgência foi realizada, apontando que não tiveram tempo de se manifestar.

"Se valendo de uma manobra, Lira aprovou a urgência do PL da Gravidez Infantil, com isso o projeto pode ir a votação a qualquer momento no plenário! O presidente nem sequer anunciou a pauta que estava em votação", escreveu a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) na rede social X.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), criticou a condução do projeto e disse que uma matéria "dessa natureza jamais iria direto ao plenário do Senado".

"Ela deve ser submetida às comissões próprias. É muito importante ouvir, inclusive, as mulheres do Senado, que são legítimas representantes das mulheres brasileiras, para saber qual é a posição delas em relação a isso", defendeu Pacheco.

Em declaração ao portal G1, Lira disse que o projeto “não avança para legalizar" e "nem retroage sobre casos de aborto previstos em lei".

"Não há hipótese de o projeto avançar nesses casos previstos em lei", garantiu.

No entanto, a lei brasileira não prevê hoje um limite de tempo de gestação para os casos de aborto legal, conforme estabelece o projeto em debate.

O presidente da Câmara também prometeu "amadurecer o texto" e colocar na relatoria do projeto uma mulher que ele considera "equilibrada".

O deputado Sóstenes Cavalcante

Crédito, Zeca Ribeiro / Câmara dos Deputados

Legenda da foto, O deputado Sóstenes Cavalcante é um dos autores do projeto de lei

Em viagem à Europa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou nesta quinta-feira (13) que vai "tomar pé da situação" do projeto quanto voltar ao Brasil.

Segundo a coluna de Igor Gadelha no portal Metrópoles, o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), teria dito ao deputado Sóstenes Cavalcante que o governo iria liberar a base aliada para votar como quiser quando o projeto for votado no plenário.

Antes da votação sobre o regime de urgência, Guimarães havia dito à coluna de Bela Megale, no jornal O Globo, que a matéria não era "de interesse do governo".

Caso aprovado, o projeto ainda precisaria passar pelo Senado e pela sanção presidencial.

Ministros do governo Lula como Cida Gonçalves, da pasta das Mulheres, e Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, manifestaram-se contra o PL.

Os argumentos contrários ao projeto

O PL 1904/2024 pretende alterar alguns artigos do Código Penal, com o objetivo de impedir a realização de qualquer aborto quando a gestação passar de 22 semanas.

Atualmente, a lei brasileira permite o aborto em três situações:

  • Quando a gestação é fruto de um estupro;
  • Se a gravidez representa risco à vida da mulher;
  • Se o feto for anencéfalo, quadro caracterizado pela ausência do encéfalo e da calota craniana.

O projeto tem recebido várias manifestações contrárias, inclusive com protestos acontecendo em várias cidades brasileiras nesta quinta-feira (13).

Uma enquete no site da Câmara registrava mais de 400 mil votos até as 19h de quinta-feira — 83% deles discordando totalmente do PL e 17% concordando totalmente.

Em artigo publicado no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a médica Ana Costa, diretora executiva da instituição, classifica o projeto como "uma reedição do 'Estatuto do Estuprador', que obriga mulheres a gestarem fruto de estupro, sob pena de prisão".

O Cebes ainda destaca que o acesso tardio ao aborto legal "reflete a desigualdade e a iniquidade na assistência à saúde, impactando sobretudo crianças (10-14 anos), mulheres pobres, pretas e moradoras da zona rural".

Um grupo de 18 entidades do setor foi formado para criar a campanha "Criança Não é Mãe", que caracteriza as mudanças propostas como o "PL da Gravidez Infantil".

Segundo os criadores do movimento, a alteração na legislação prejudicará principalmente as crianças menores de 14 anos, que representam o maior grupo que necessita dos serviços de aborto após o terceiro trimestre.

Mulheres segurando cartazes em protesto à noite

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Protesto contra o PL no Rio

De acordo com eles, nessa faixa etária — em que qualquer gravidez é fruto de um estupro presumido —, há mais demora em descobrir ou mesmo identificar uma gestação.

Além disso, em dois terços dos casos, o autor do estupro é da própria família da menina. Isso, argumentam, inibe a vítima de procurar serviços de saúde ou de denunciar o crime para as autoridades logo nas primeiras semanas de gravidez.

A campanha ainda destaca que a eventual mudança na lei significará que os envolvidos no aborto poderão ser condenados pelo crime de homicídio simples, com pena de prisão de até 20 anos.

Enquanto isso, a legislação estabelece uma pena de cerca de 10 anos — ou metade do tempo — para o crime de estupro.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil em 2022. Dessas, 88,7% das vítimas eram do sexo feminino e cerca 60% tinham no máximo 13 anos de idade.

Já o DataSUS contabiliza que, em 2019, cerca de 70 gestações foram interrompidas legalmente em crianças e adolescentes brasileiras com menos de 14 anos.

A campanha alerta que, se aprovado, o projeto "obrigará as meninas vítimas de violência a seguirem com a gestação" e isso significará um retrocesso "nos direitos sexuais e reprodutivos garantidos por lei desde 1940".

O que dizem os apoiadores do projeto

Dezenas de pessoas e cartazes, alguns deles com foto de bebê

Crédito, Cris Faga/NurPhoto via Getty Images

Legenda da foto, Manifestação contrária ao aborto em São Paulo (SP), em 2021

Nas redes sociais, o deputado Sóstenes Cavalcante escreveu que o PL 1904 "tem como objetivo considerar o aborto tardio como homicídio, reforçando a proteção à vida desde a concepção".

O projeto foi protocolado em 17 de maio. Nesse mesmo dia, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, havia suspendido uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a chamada assistolia fetal.

Esse procedimento, recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das etapas do aborto decorrente de estupro feito no último trimestre da gestação, usa medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto antes que ele seja retirado do útero.

Segundo Moraes, a resolução do CFM ultrapassava a competência regulamentar do conselho e impunha "tanto ao profissional de medicina quanto à gestante vítima de um estupro uma restrição de direitos não prevista em lei capaz de criar embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres".

O ministro do STF ainda lembrou que a legislação brasileira não estipula quaisquer limitações "circunstanciais, procedimentais ou temporais" para a realização do aborto previsto em lei.

A decisão de Moraes foi liminar e será discutida futuramente no plenário do Supremo. O CFM também recorreu do parecer do ministro.