O primeiro passo a ser dado por empresas interessadas em iniciar um processo de transformação digital é definir – ou rever – o futuro do negócio. Especialmente por conta da chegada de ações que abrirão terreno para novos planos on-line, além da estratégia corporativa “tradicional”, que já estava estabelecida, explica Marcelo Nakagawa, professor de inovação e transformação digital do Insper.
“Organizações mais avançadas na digitalização evoluíram para visões de futuro que integram, por exemplo, uma maior participação da jornada do cliente [nos negócios]”, afirma Nakagawa. A fim de deslanchar esse processo, as empresas costumam reservar investimentos exclusivos para novos projetos, adquirir startups do setor e criar departamentos de apoio e desenvolvimento de soluções virtuais.
É fundamental saber também o que a transformação digital vai representar para a companhia, continua o professor. Por isso, o segundo passo dessa caminhada inclui digitalizar rotinas, com o intuito de reduzir custos, aumentar as vendas e a produtividade. Em seguida, explica Nakagawa, vem o desenvolvimento de modelos digitais de negócios.
“Como as tecnologias on-line ‘caíram de preço’ e ficaram mais acessíveis, é relativamente fácil para as corporações desenharem novos formatos de atuação, para só depois decidirem escalar os negócios”, diz. É o caso de grandes companhias do agro, por exemplo, que montam braços de transporte de grãos, ou de incorporadoras de imóveis que adquirem fintechs de oferta de crédito para moradias – tudo baseado em rotinas de operação on-line.
Como não há uma receita infalível para executar a transformação, cada empresa vai precisar lidar, ao mesmo tempo, com as planilhas “tradicionais”, que existiam antes da “virada” para o on-line, e novos motores de criação de valor, avisa o professor.
É o que está fazendo a Afya, grupo de educação em saúde com 32 instituições de ensino superior, a maioria com oferta de cursos de medicina, em 13 cidades brasileiras. A empresa é considerada uma pioneira na adoção de práticas digitais voltadas à aprendizagem e ao suporte do exercício da carreira médica.
“A digitalização é hoje o nosso DNA”, destaca Lélio Souza Jr., vice-presidente de soluções digitais da Afya. “A adoção de tecnologias tem sido o grande vetor de inovação na educação médica, viabilizando uma experiência de aprendizado personalizada, com medição em ‘real time’ [tempo real] da performance de alunos e professores.”
Já no campo de soluções digitais, área em que a marca também atua, Souza diz que foi possível, graças à virtualização, oferecer opções de suporte à tomada de decisões clínicas, de atualização médica e gestão de clínicas. “A Afya se relaciona com o profissional de saúde em todas as etapas da carreira, desde a formação, qualificação e produtividade, em um modelo ‘one stop shop’ [oferta de múltiplos produtos e serviços]”, afirma.
O executivo explica que a jornada digital do grupo tomou corpo com uma combinação de investimentos, aquisições e novas unidades de negócios. A empresa tem um plano formal de transformação digital desde a entrada do fundo de private equity Crescera na estrutura societária, em 2016.
Em 2020, ingressou no segmento de sistemas para médicos, com a aquisição da primeira startup do portfólio, a Pebmed, que desenvolve conteúdos para profissionais da área. “De lá para cá, foram adquiridas onze healthtechs, em segmentos como educação e relacionamento médico-paciente”, diz Souza.
No ano passado, a atuação digital foi ampliada com um portfólio de soluções B2B (negócios entre empresas). Já foram desenvolvidos 97 projetos, de diversas aplicações, para 45 clientes, como farmacêuticas, laboratórios e redes de farmácias.
Na incorporadora e construtora Direcional, especializada em habitação econômica, a estratégia de arranque foi pensar a transformação digital a partir da experiência do consumidor. “Em 2019, estávamos prontos para impulsionar a relação com os clientes por meio da digitalização”, diz Henrique Paim, CFO (diretor financeiro) da Direcional Engenharia. “A chegada da pandemia acelerou o plano de implementação e impôs uma nova agenda”, lembra.
Com a emergência sanitária, a companhia viabilizou a venda 100% on-line de imóveis, com a digitalização de processos como análise de crédito e assinatura de contratos. Para alcançar esse patamar, fundou uma unidade, o DIRILabs, responsável por unir as áreas de negócios numa mesma “pegada” digital. A movimentação deu resultados imediatos.
A Direcional apresentou um crescimento de 27% nas vendas de 2020, em relação a 2019, mesmo com o lockdown e os estandes de vendas fechados. Em 2022, 41% dos clientes que visitaram os pontos de vendas físicos tiveram o primeiro contato com a marca via canais digitais – mais de 14 mil contratos foram assinados a distância.
“Reconfiguramos o jeito de entender o papel da tecnologia no desenvolvimento dos negócios”, avalia o CFO. Em 2023, a companhia registrou lucro líquido de R$ 58,8 milhões no primeiro trimestre, um avanço de 120% ante o mesmo período do ano passado.
As diretrizes digitais seguem em desenvolvimento. Paim adianta que a empresa tem se aprofundado em novas alternativas, como o metaverso, o aprendizado de máquina e a inteligência artificial (IA), que serão cada vez mais usadas no dia a dia de trabalho.
O exercício de olhar para o futuro também é uma prioridade para o Grupo Fleury, de prestação de serviços médicos e medicina diagnóstica. “Temos uma cultura de inovação que caracteriza a nossa trajetória de quase cem anos”, diz Edgar Gil Rizzatti, presidente das unidades de negócios médico, técnico, de hospitais e novos elos. “A transformação digital tem sido utilizada para avançar na resposta rápida às necessidades dos pacientes.”
Para se ter uma ideia, dos quase cem milhões de exames realizados nas áreas técnicas do grupo em 2022, 88% foram liberados por processos automatizados, sem intervenção humana. Já o uso de IA ganhou reforço nas tomografias, para priorizar casos com diagnósticos graves. A tecnologia permite abreviar em até 15 minutos a detecção de dados críticos nas análises computadorizadas, diz Rizzatti.